20 de mar. de 2021

A MULHER E A CIDADE

Padrões de gênero e a cidade

A cidade é uma criação complexa e extraordinária construída por muitas mãos e histórias ao longo de centenas de anos e que apesar desses cruzamentos de vivências e experiências que perpassam a sua construção, o artefato resultante é antes um manifesto ideológico que sob a luz da análise antropológica, revela uma base patriarcal que se impôs desde os primeiros tempos.

As ideias feministas emergentes na atualidade trouxeram mais clareza e compreensão da noção patriarcal que se tinha sobre as mulheres nos contextos da construção (lar) e do espaço público (rua). A ideia do confinamento da mulher dentro do espaço doméstico e do seu expurgamento do espaço público se deu em nome da “fragilidade feminina”, discurso esse que perpetrou a cultura nacional e fortaleceu a dicotomização entre homens e mulheres.

“A mulher está para o mundo privado doméstico, assim como o homem está para o mundo público e político”. (CARLOTO; MARIANO, 2010)

Nossas construções nacionais que servem exclusivamente ao feminino foram planejadas e erguidas pelo patriarcado. Desde os internatos femininos do século XVIII, passando pelas escolas exclusivas de meninas do século XIX, até a 1ª penitenciária feminina do século XX, erguida na cidade de São Paulo onde a punição institucionalizada pelo estado brasileiro era treinar e aperfeiçoar os “dons domésticos” das transgressoras, sob a supervisão da Igreja Católica. Isto posto, denota o pensamento que norteou os desenhos fundacionais das construções e da cidade e que determinou que o espaço público não é lugar de mulheres. As decisões tomadas séculos atrás ainda repercutem negativamente na dimensão social que caracteriza a vida da mulher nas cidades e que por serem excludentes e repressoras do feminino, a colocam em risco.

 

A cidade e a equidade

A equidade de gênero é uma conquista das economias e sociedades que estão há mais tempo trabalhando com as questões da desigualdade entre homens e mulheres. Os países nórdicos apresentam os maiores índices de paridade, enquanto o Brasil ocupa a 92ª posição no ranking, onde a primeira colocação cabe ao país menos desigual e a última ao mais desigual, entre 153 países analisados. Embora o Brasil apresente paridade de gênero na formação acadêmica, os índices de renda média e salários são desproporcionais entre homens e mulheres, segundo o relatório do Fórum Econômico Mundial sobre desigualdade de gênero. (Cidades, 2019)

A baixa participação das mulheres como lideranças políticas a frente de Instituições públicas e Secretarias ou compondo os Ministérios e o Congresso Nacional, denotam a disparidade entre homens e mulheres. A invisibilidade feminina na política e em cargos de decisão, cria um círculo vicioso que impede as mulheres de alcançarem as altas hierarquias de poder e por isso, não se avançam projetos, leis de incentivo e todo cabedal legítimo de garantias para equidade.

As cidades brasileiras, de norte a sul, apresentam diferentes níveis de equidade que são desdobramentos de aspectos culturais e econômicos de cada lugar. Em análise a dimensão cultural, as grandes capitais estão mais abertas para a recepção e acolhimento de valores que incorporem o progresso humano e mais afeitas para a equidade. Mas, em face a vulnerabilidade social nos territórios das grandes cidades, a desigualdade socioespacial limita a qualidade das oportunidades escolares e impõe desafios para homens e mulheres.  

 

Cenário atual

As transformações do espaço geográfico, estão intimamente ligadas aos meios de produção e ao trabalho. São as relações econômicas e sociais que desenham e redesenham a cidade através do tempo e são resultantes de modelos redutores e ideológicos de urbanismo, ou são arranjos, decorrentes da divisão espacial, do zoneamento baseado na concepção funcionalista da organização prática das atividades setoriais econômicas.

Estamos vivendo um momento atípico, de incertezas com relação ao futuro, que somam novos temas as discussões sobre o atual modelo urbano das cidades. A crise sanitária causada pela pandemia da COVID-19, que reforçou o que não queremos mais nas cidades: a homogeneização e hierarquização do espaço urbano e a urbanização com tendências à segregação. Esse desenvolvimento econômico desigual, colocou a maior parte da população em situação de vulnerabilidade por pobreza e miséria e a exclusão do acesso a bens e serviços e o desfavorecimento das regiões mais carentes, está nitidamente atrelado a limitação na prevenção aos riscos da pandemia.

Por outro lado, a crise sanitária com suas medidas de distanciamento, incorporou o mundo digital a rotina das pessoas e novos conceitos de morar e trabalhar foram criados. Esse impulso tecnológico impacta as cidades de diferentes formas, já que o comportamento digital gera uma cultura regimentada por regras próprias que customizam, novas formas de viver, paralelas a realidade das cidades. 

A complexidade do atual cenário exige intervenções cuidadosas em cada pedacinho do tecido da cidade e não pode ser feita sem a presença da comunidade. É assim, que a população pode se envolver e contribuir para as decisões que vão influenciar diretamente, o futuro dos seus bairros e comunidades. O planejamento participativo, que sempre foi precípuo nas decisões, é agora a base fundamental para abrigar o cenário que queremos ver nas cidades.

 

A cidade que queremos

A cidade é um organismo vivo, com capacidade de regeneração e pode ser moldada e adaptada para novas demandas. E é função da arquitetura e do urbanismo melhorar a qualidade das cidades, ampliar as oportunidades e reduzir as desigualdades.

Jane Jacobs (1916-2006), urbanista e ativista social, nascida nos EUA, escreveu no início da década de 1960, um dos mais influentes estudos urbanos, “Morte e Vida das Grandes Cidades”. Categórica crítica da tendência urbana em vigor nos anos 50, do espraiamento dos subúrbios e da construção de casas individuais, das expressivas demolições para a construção de novos edifícios, do culto ao automóvel particular e das rodovias. A autora valoriza a cidade multifuncional e compacta, em cuja relação entre o número de habitantes que nela vivem e a infraestrutura urbana disponível esteja balanceada em seus limites ótimos. As várias formas de uso do espaço, aproxima as pessoas e as protege, sob os muitos olhos que por ela circulam.

Jacobs, em oposição ao planejamento de concepção funcionalista e autoritária, incorporou a humanização dos processos de planejamento urbano, com a participação popular nas decisões públicas. Vivenciar os bairros e seus moradores e todo mosaico de relações e vínculos que se estabelecem no cotidiano e entender as diferentes dimensões humanas que extrapolam as questões meramente funcionais da cidade, são prerrogativas indispensáveis para favorecer bases igualitárias entre homens e mulheres. A humanização nos processos de gestão das cidades, feitas também, por mãos femininas, tem potencial para abrir novos caminhos, resolver anseios represados e abrigar novas causas. 

“Subsidiariedade é o princípio de que o governo funciona melhor - de forma mais responsável e responsiva - quando está mais próximo das pessoas a quem atende e das necessidades que aborda.” (JACOBS, 1961)

As ferramentas de planejamento urbano que incorporam essas diretrizes, geram estudos e debates com a comunidade na escala do bairro e proporcionam qualidade de vida e bem estar social. E nesse sentido, as associações de moradores tem papel fundamental na prevenção da violência, na promoção da diversidade, no suprimento das necessidades de trabalho, saúde, educação e socialização.  As políticas públicas feitas a partir de planos diretores espontâneos, comunitários, podem contribuir verdadeiramente para a cidadania plena.

 

CARLOTO, Cássia; MARIANO, Silvana. No meio do caminho entre o público e o privado: um debate sobre o papel das mulheres na política de assistência social. Estudos Feministas, v. 18(2), Florianópolis, maio-agosto 2010, p. 451-471.

JACOBS, Jane. Morte e Vida das Grandes Cidades. Carlos S. Mendes Rosa (Trad.). Rio de Janeiro: Editora     Martins Fontes, 2000.

TERRA CIDADES. Brasil sobe em ranking de igualdade de gênero, mas ainda ocupa a 92ª posição. 2019. Disponível em: <https://www.terra.com.br/noticias/brasil/cidades/brasil-sobe-em-ranking-de-igualdade-de-genero-mas-ainda-ocupa-a-92-posicao,54c137b14b632bbada380b295af24442nolp3dry.html Acesso em: 05.03.2021.