30 de jul. de 2014

O Significado do Objeto

A IKEA é uma companhia privada, de origem sueca, fundada em 1943, apresentou em uma exposição em Lyon, França, um apartamento de 100m² com móveis superdimensionados que convidavam os visitantes a reviverem sua infância.



O realismo fantástico visto nas novelas “Saramandaia” (Dias Gomes, 1976) e “Meu Pedacinho de Chão” (Benedito Ruy Barbosa, 1971) popularizou esse gênero que se manifesta através de personagem que vira lobisomem em noite de lua cheia, que tem asas que brotam da corcunda e que explode de tanto comer. De cavalo inanimado que se movimenta através de engrenagens, de figurino elaborado com bugigangas impensáveis e de cenários coloridos e fortemente expressivos.


E as reflexões propostas – por vezes dolorosas -, se afloram nesse cenário de encantamento.  


Na literatura, em especial “Cem Anos de Solidão” (1967), obra máxima do realismo fantástico Latino americano do colombiano Gabriel García Márquez, o leitor mentalmente compõe os cenários descritos no livro. Desenha mentalmente as muitas gerações de Arcádio, Aureliano e Amaranta, enquanto espera que o pergaminho se revele à medida da morte de algum personagem. Novamente, a narrativa fundida com elementos fantásticos e fabulosos, é usada para complementar a palavra, num tempo de ditadura e de vigilância cerceante.  

O realismo mágico, também se manifestou nas artes e arquitetura e influenciou notáveis escritores como o cubano italiano Ítalo Calvino (1923-1985), que escreveu “As Cidades Invisíveis” (1972) um substrato de reflexões acerca do urbanismo.

Realismo mágico nas ruas: Os Gêmeos          

Realismo mágico de Carlos Arturo Torres Tovar,
para a Peugeot
     
O realismo fantástico no espaço

No outro extremo da comunicação visual do teatro o Teatro do Absurdo nasceu do Surrealismo, explora os sentimentos humanos quando nos limites da neurose e rompe com a lógica aristotélica. O siciliano Luigi Pirandello (1867-1932) ajudou a revolucionar essa arte performática e sobre o simbolismo do objeto escreveu:

“Cada objeto[1] costuma transformar-se, em nós, segundo as imagens que evoca e reúne, por assim dizer, em seu redor. É claro que um objeto também pode agradar por si mesmo, pela diversidade das sensações agradáveis que suscita em nós numa percepção harmoniosa; mas bem mais frequentemente, o prazer que um objeto nos dá não se encontra no objeto em si mesmo. A fantasia embeleza-o, cingindo-o e quase projetando nele imagens que nos são queridas. Nem nós o percepcionamos já tal qual como ele é, mas quase animado pelas imagens que suscita em nós ou que os nossos hábitos lhe associam. No objeto, em suma, nós amamos aquilo que nele projetamos de nosso, o acordo, a harmonia que estabelecemos entre nós e ele, a alma que ele adquire só para nós e que é formada pelas nossas recordações. Luigi Pirandello (1867-1932)

O objeto, segundo Pirandello, é parte real e parte significado. É uma cadeira de balanço e é o local onde minha avó se balançava por horas. É uma janela e é a minha interface com a cidade. O objeto enfim, é significante e significado.

Martin Julius Esslin, um austríaco produtor, argumentista, jornalista, adaptador, tradutor, crítico, acadêmico e erudito professor de arte dramática (Ufa!), cunhou o termo "Teatro do Absurdo" em seu trabalho hômonimo de 1962. Outros estilos são por vezes confundidos com o teatro do absurdo, como o Vaudeville, Nonsense e Burlesco, mas algumas singularidades o tornam único conforme definido por Esslin:

“O teatro do absurdo se esforça por expressar o sentido do sem sentido da condição humana, e a inadequação da abordagem racional, através do abandono dos instrumentos racionais e do pensamento discursivo e o realiza através de 'uma poesia que emerge das imagens concretas e objetificadas do próprio palco.“ (Martin Esslin, 1918-2002)

O teatro do absurdo influencia a mensagem através dos objetos cênicos, da iluminação densa e utópica e dos figurinos. Esperando Godot (1952), escrita pelo dramaturgo Irlandês Samuel Beckett (1906-1989), é considerada a principal obra do teatro do absurdo e a abordagem estética das muitas montagens, sempre se faz pelo vazio, a estrada, a árvore e a noite.

Montagens de Esperando Godot

Poucos elementos em cena, dois personagens em angustiante espera e a plateia “lendo” as pausas, os vazios, as folhas que aparecem na árvore no segundo tempo, os personagens que vão e que vem, a mala... Enfim, interpretando os objetos e gravitando em torno do eixo das intenções de Beckett.

É tão pouco e diz tanto! E não por acaso, a descrição da palavra minimalismo[2] faz referência as peças de Beckett. 

O teatro nos ajuda a refletir sobre a linguagem visual como meio de comunicação e elucida sobre a força do design minimalista na composição do espaço. Grandes mestres do design transportaram essas influencias para móveis, objetos e ambientes e nos anos de 1980, o design minimalista se estabeleceu como uma reação aos movimentos pós-modernos no design. Como os grupos Memphis, Alchymia e Zeus e designers como Donald Judd, Philippe Starck, Shiro Kuramata, John Pawson entre outros.



Móveis em acrílico, metal, aramado e espelhado: superfícies transparentes 


A reflexão sobre o significado do que vemos é substancialmente alterada pela forma do que vemos (no sentido do design) e como vemos (nossos olhos, nossas experiências) e nesse sentido, o design tem o poder de mudar a história. Parafraseando Pirandello (1867-1932), 

“Assim é se lhe parece!” 






[1] Significado de Objeto: Tudo o que se oferece à vista, que afeta os sentidos.

[2] A palavra minimalismo se refere a uma série de movimentos artísticosculturais e científicos que percorreram diversos momentos do século XX e preocuparam-se em fazer uso de poucos elementos fundamentais como base de expressão. Os movimentos minimalistas tiveram grande influência nas artes visuais, no design, na música e na própria tecnologia. O termo pode ser usado para descrever as peças de Samuel Beckett... (http://pt.wikipedia.org/wiki/Minimalismo), acesso em 29.07.14)



CALVINO, Ítalo. As cidades Invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1994
MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. Cem Anos de Solidão (Nova Edição), Rio de Janeiro: Editora Record, 2013
















24 de jul. de 2014

Talento e destino

“Nem sempre uma vocação avassaladora coincide com algum talento. Cada um de nós tem vários exemplos de pessoas, com enorme vocação para cantar, mas é uma coisa horrorosa quando cantam. Quer fazer o que o atrai, mas a natureza lhe é madrasta quanto aos recursos para concretizar a vocação.” (João Ubaldo Ribeiro)

O exemplo usado por Ubaldo me fez pensar em muitas coisas, inicialmente, ao pé da letra, nos programas no formato de talent show que reúnem cantores que ainda não tiveram a oportunidade de mostrar seu potencial. Lembrei especialmente daqueles que ficaram famosos pela desmedida vocação e despudorada falta de talento.

Clarice Lispector também definiu vocação e talento do mesmo modo: “Vocação é diferente de talento. Pode-se ter vocação e não ter talento, isto é, pode-se ser chamado e não saber como ir.”

Conheço pessoas brilhantes que questionam e desafiam o conhecimento estabelecido com discurso afiado, que se sobrepõe em qualquer arguição e que tem enorme talento na comunicação oral e escrita. Mas, talvez por falta de vocação, ou por apostar as fichas em outra vocação latente, enveredaram para outras paragens e no final “morreram na praia”.[1]

Embora alguns autores acreditem que as palavras “vocação” e “talento” não tenham distinção de significado, ou que uma seja sinônimo da outra, Vocação, do latim vocare, quer dizer chamado. Vocação é um chamado interior de amor por um fazer. Talento, do latim talentum, significa escala, balança e representava uma unidade de medida. Entendo que a palavra “vocação” para João Ubaldo Ribeiro e Clarice Lispector represente um sentimento genuíno, como é o amor pela música. Enquanto que o talento é um atributo ou competência, como ter uma bela voz.  

É certo que no momento da escolha da profissão que nos acompanhará pela vida toda (ou quase), definimos qual vocação seguir e nos deixamos guiar pelas habilidades naturais que temos, as mais influentes e visíveis. Também decidimos baseados em aspectos práticos, econômicos e sociais, mas as engenhosidades observadas desde o berço são as diretrizes principais. Nossas opções são múltiplas e variáveis, de modo que ao longo da vida, vamos abrindo mão de algumas habilidades para aprimorarmos outras.  

Oliver Sacks (1998), neurologista inglês, autor de livros inspiradores que deram origem a filmes como "Tempo de Despertar" (1990), em seus estudos sobre a utilização da música com fins terapêuticos, declara que a musicofilia[2] é inata no ser humano. Todos concordam que a música emociona, acalma ou excita, consola e inspira. “Ouvimos música com os nossos músculos”, já dizia Nietzsche. E se a música que se sente com nossos recursos perceptórios, é inata, ou seja, faz parte de nós desde o nascimento, é próprio da natureza humana nascer cantor e só mais tarde desencantar, desencanar e partir para a segunda opção-vocação. Mas, passamos todos por esse processo? Se sim, isso explica porque o João Ubaldo Ribeiro exemplificou o vocacionado sem talento com a figura do cantor.

A música é, portanto, uma arte anímica e subjetiva que pode produzir efeitos no corpo e na mente de quem a ouve. E enquanto arte, encampa também outras formas de expressão artística, como a dança, a poesia, a representação, enfim, todas essas possibilidades que testamos desde a primeira idade.

Sobre esse aspecto, é importante lembrar que tanto “vocação” como “talento” são inatos ou aprendidos. Tive muitos alunos que questionavam seu talento para a arquitetura, já que não eram muito bons nas disciplinas de desenho. Entendo que a habilidade manual seja para o arquiteto, como a voz seja para o cantor, porque através das mãos é que se exprimem as ideias, é o meio pelo qual o profissional registra sua criação. Mas arquitetura não se faz só com um belo traço. O talento para a arquitetura demanda ter várias habilidades e desenhar é só uma que pode ser suprimida pelo resto do conjunto ou melhor ainda, pode ser aprendida.


Em resumo, "Em primeiro lugar vem a dedicação, depois a habilidade" (Leonardo Da Vinci)




[1] E sobre a expressão “morrer na praia”, o livro “Mas será o Benedito?” (PRATA, 2011), registra que a praia em questão é com P maiúsculo, uma cidade na África, a capital de Cabo Verde (que pertenceu a Portugal até 1975). Por lá tinha um presídio para onde eram mandados revolucionários portugueses banidos e de onde nunca mais voltavam, dai a expressão “morrer na praia”.

[2] Afeição, gosto, predileção pela música. Antônimo: musicofobia (disponível em: http://www.dicio.com.br/musicofilia/ acesso em 24.07.2014)



Fonte: 

PRATA, Mário. Mas Será o Benedito? Dicionário de provérbios, expressões e ditos populares. São Paulo: Editora Planeta Brasil, 2011, ISBN: 9788576656296

SACKS, Oliver. VENDO VOZES: Uma viagem ao mundo dos surdos.  Tradução Laura Teixeira Motta, São Paulo: Companhia das Letras, 1998, ISBN: 9788571647794 

João Ubaldo Ribeiro, Set./Out. 2005 – Revista da ESPM, disponível em http://acervo-digital.espm.br/revista_da_espm/2005/set_out/entrevista_joao_ubaldo.pdf)