24 de jul. de 2014

Talento e destino

“Nem sempre uma vocação avassaladora coincide com algum talento. Cada um de nós tem vários exemplos de pessoas, com enorme vocação para cantar, mas é uma coisa horrorosa quando cantam. Quer fazer o que o atrai, mas a natureza lhe é madrasta quanto aos recursos para concretizar a vocação.” (João Ubaldo Ribeiro)

O exemplo usado por Ubaldo me fez pensar em muitas coisas, inicialmente, ao pé da letra, nos programas no formato de talent show que reúnem cantores que ainda não tiveram a oportunidade de mostrar seu potencial. Lembrei especialmente daqueles que ficaram famosos pela desmedida vocação e despudorada falta de talento.

Clarice Lispector também definiu vocação e talento do mesmo modo: “Vocação é diferente de talento. Pode-se ter vocação e não ter talento, isto é, pode-se ser chamado e não saber como ir.”

Conheço pessoas brilhantes que questionam e desafiam o conhecimento estabelecido com discurso afiado, que se sobrepõe em qualquer arguição e que tem enorme talento na comunicação oral e escrita. Mas, talvez por falta de vocação, ou por apostar as fichas em outra vocação latente, enveredaram para outras paragens e no final “morreram na praia”.[1]

Embora alguns autores acreditem que as palavras “vocação” e “talento” não tenham distinção de significado, ou que uma seja sinônimo da outra, Vocação, do latim vocare, quer dizer chamado. Vocação é um chamado interior de amor por um fazer. Talento, do latim talentum, significa escala, balança e representava uma unidade de medida. Entendo que a palavra “vocação” para João Ubaldo Ribeiro e Clarice Lispector represente um sentimento genuíno, como é o amor pela música. Enquanto que o talento é um atributo ou competência, como ter uma bela voz.  

É certo que no momento da escolha da profissão que nos acompanhará pela vida toda (ou quase), definimos qual vocação seguir e nos deixamos guiar pelas habilidades naturais que temos, as mais influentes e visíveis. Também decidimos baseados em aspectos práticos, econômicos e sociais, mas as engenhosidades observadas desde o berço são as diretrizes principais. Nossas opções são múltiplas e variáveis, de modo que ao longo da vida, vamos abrindo mão de algumas habilidades para aprimorarmos outras.  

Oliver Sacks (1998), neurologista inglês, autor de livros inspiradores que deram origem a filmes como "Tempo de Despertar" (1990), em seus estudos sobre a utilização da música com fins terapêuticos, declara que a musicofilia[2] é inata no ser humano. Todos concordam que a música emociona, acalma ou excita, consola e inspira. “Ouvimos música com os nossos músculos”, já dizia Nietzsche. E se a música que se sente com nossos recursos perceptórios, é inata, ou seja, faz parte de nós desde o nascimento, é próprio da natureza humana nascer cantor e só mais tarde desencantar, desencanar e partir para a segunda opção-vocação. Mas, passamos todos por esse processo? Se sim, isso explica porque o João Ubaldo Ribeiro exemplificou o vocacionado sem talento com a figura do cantor.

A música é, portanto, uma arte anímica e subjetiva que pode produzir efeitos no corpo e na mente de quem a ouve. E enquanto arte, encampa também outras formas de expressão artística, como a dança, a poesia, a representação, enfim, todas essas possibilidades que testamos desde a primeira idade.

Sobre esse aspecto, é importante lembrar que tanto “vocação” como “talento” são inatos ou aprendidos. Tive muitos alunos que questionavam seu talento para a arquitetura, já que não eram muito bons nas disciplinas de desenho. Entendo que a habilidade manual seja para o arquiteto, como a voz seja para o cantor, porque através das mãos é que se exprimem as ideias, é o meio pelo qual o profissional registra sua criação. Mas arquitetura não se faz só com um belo traço. O talento para a arquitetura demanda ter várias habilidades e desenhar é só uma que pode ser suprimida pelo resto do conjunto ou melhor ainda, pode ser aprendida.


Em resumo, "Em primeiro lugar vem a dedicação, depois a habilidade" (Leonardo Da Vinci)




[1] E sobre a expressão “morrer na praia”, o livro “Mas será o Benedito?” (PRATA, 2011), registra que a praia em questão é com P maiúsculo, uma cidade na África, a capital de Cabo Verde (que pertenceu a Portugal até 1975). Por lá tinha um presídio para onde eram mandados revolucionários portugueses banidos e de onde nunca mais voltavam, dai a expressão “morrer na praia”.

[2] Afeição, gosto, predileção pela música. Antônimo: musicofobia (disponível em: http://www.dicio.com.br/musicofilia/ acesso em 24.07.2014)



Fonte: 

PRATA, Mário. Mas Será o Benedito? Dicionário de provérbios, expressões e ditos populares. São Paulo: Editora Planeta Brasil, 2011, ISBN: 9788576656296

SACKS, Oliver. VENDO VOZES: Uma viagem ao mundo dos surdos.  Tradução Laura Teixeira Motta, São Paulo: Companhia das Letras, 1998, ISBN: 9788571647794 

João Ubaldo Ribeiro, Set./Out. 2005 – Revista da ESPM, disponível em http://acervo-digital.espm.br/revista_da_espm/2005/set_out/entrevista_joao_ubaldo.pdf)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe aqui a sua opinião!