“Nem sempre uma vocação avassaladora
coincide com algum talento. Cada um de nós tem vários exemplos de pessoas, com
enorme vocação para cantar, mas é uma coisa horrorosa quando cantam. Quer fazer
o que o atrai, mas a natureza lhe é madrasta quanto aos recursos para
concretizar a vocação.” (João Ubaldo Ribeiro)
O
exemplo usado por Ubaldo me fez pensar em muitas coisas, inicialmente, ao pé da
letra, nos programas no formato de talent
show que reúnem cantores que ainda não tiveram a oportunidade de mostrar seu
potencial. Lembrei especialmente daqueles que ficaram famosos pela desmedida vocação
e despudorada falta de talento.
Clarice
Lispector também definiu vocação e talento do mesmo modo: “Vocação é diferente de talento. Pode-se ter vocação e não ter
talento, isto é, pode-se ser chamado e não saber como ir.”
Conheço
pessoas brilhantes que questionam e desafiam o conhecimento estabelecido com
discurso afiado, que se sobrepõe em qualquer arguição e que tem enorme talento
na comunicação oral e escrita. Mas, talvez por falta de vocação, ou por apostar
as fichas em outra vocação latente, enveredaram para outras paragens e no final
“morreram na praia”.[1]
Embora
alguns autores acreditem que as palavras “vocação” e “talento” não tenham
distinção de significado, ou que uma seja sinônimo da outra, Vocação, do latim vocare, quer dizer chamado. Vocação é um chamado interior de amor
por um fazer. Talento, do latim talentum,
significa escala, balança e representava uma unidade de medida. Entendo que a palavra
“vocação” para João Ubaldo Ribeiro e Clarice Lispector represente um sentimento
genuíno, como é o amor pela música. Enquanto que o talento é um atributo ou competência,
como ter uma bela voz.
É certo que no momento da escolha da profissão que
nos acompanhará pela vida toda (ou quase), definimos qual vocação seguir e nos deixamos
guiar pelas habilidades naturais que temos, as mais influentes e visíveis. Também
decidimos baseados em aspectos práticos, econômicos e sociais, mas as engenhosidades observadas desde
o berço são as diretrizes principais. Nossas opções são múltiplas e variáveis,
de modo que ao longo da vida, vamos abrindo mão de algumas habilidades para
aprimorarmos outras.
Oliver Sacks
(1998), neurologista inglês, autor de livros inspiradores que deram origem a filmes como "Tempo de Despertar" (1990), em seus estudos sobre a utilização
da música com fins terapêuticos, declara que a musicofilia[2] é
inata no ser humano. Todos concordam que a música emociona, acalma ou excita, consola
e inspira. “Ouvimos música com os nossos
músculos”, já dizia Nietzsche. E se a música que se sente com nossos recursos perceptórios,
é inata, ou seja, faz parte de nós desde o nascimento, é próprio da natureza
humana nascer cantor e só mais tarde desencantar, desencanar e partir para a segunda
opção-vocação. Mas, passamos todos por esse processo? Se sim, isso explica porque o João
Ubaldo Ribeiro exemplificou o vocacionado sem talento com a figura do cantor.
A música é, portanto, uma arte anímica e subjetiva que pode produzir efeitos no corpo e na mente de quem a ouve. E enquanto arte, encampa também outras formas de expressão artística,
como a dança, a poesia, a representação, enfim, todas essas possibilidades que
testamos desde a primeira idade.
Sobre esse
aspecto, é importante lembrar que tanto “vocação” como “talento” são inatos ou
aprendidos. Tive muitos alunos que questionavam seu talento para a arquitetura,
já que não eram muito bons nas disciplinas de desenho. Entendo que a habilidade
manual seja para o arquiteto, como a voz seja para o cantor, porque através das
mãos é que se exprimem as ideias, é o meio pelo qual o profissional registra
sua criação. Mas arquitetura não se faz só com um belo traço. O talento para a
arquitetura demanda ter várias habilidades e desenhar é só uma que pode ser suprimida
pelo resto do conjunto ou melhor ainda, pode ser aprendida.
Em resumo, "Em primeiro lugar vem a dedicação, depois a habilidade" (Leonardo Da Vinci)
[1] E sobre a expressão “morrer
na praia”, o livro “Mas será o Benedito?” (PRATA, 2011), registra que a praia
em questão é com P maiúsculo, uma cidade na África, a capital de Cabo Verde (que
pertenceu a Portugal até 1975). Por lá tinha um presídio para onde eram mandados
revolucionários portugueses banidos e de onde nunca mais voltavam, dai a
expressão “morrer na praia”.
[2] Afeição,
gosto, predileção pela música. Antônimo: musicofobia (disponível em: http://www.dicio.com.br/musicofilia/
acesso em 24.07.2014)
Fonte:
PRATA, Mário. Mas Será o Benedito? Dicionário de provérbios, expressões e ditos populares. São Paulo: Editora Planeta Brasil, 2011, ISBN: 9788576656296
SACKS, Oliver. VENDO VOZES: Uma viagem ao mundo dos surdos. Tradução Laura Teixeira Motta, São Paulo: Companhia das Letras, 1998, ISBN: 9788571647794
João Ubaldo Ribeiro, Set./Out. 2005 – Revista da ESPM, disponível em http://acervo-digital.espm.br/revista_da_espm/2005/set_out/entrevista_joao_ubaldo.pdf)
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